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Chuvas de Verão
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Entre uma chuva e outra, na rápida estiagem, Maria chamou os três filhos pequenos para irem até a cidade. Precisava pagar a prestação do novo aparelho celular que havia adquirido há pouco mais de dois meses.

Caminhavam pelas ruas lamacentas e com poças d’água. Lixos se amontoavam em galhos de árvores esparramados pelo chão de terra. A chuva já fazia estragos há dias. Os buracos se avolumavam, e fendas profundas iam se formando nos barrancos. Já em certa altura, onde o aclive terminava numa rua asfaltada, uma criança chorava o pé doído enfiado no pedaço de arame farpado que alguém deixara pelo caminho. A mãe se fazia de morta, acostumara-se com o choro do menino manhoso que só viera ao mundo para lhe atazanar.

Fique aí com essa bocarra aberta. Esse meu celular vai tirar sua fotografia, e depois todo mundo vai rir de você – dizia a mãe ridicularizando a dor e a infelicidade do filho.

A criança mais velha, de nove anos de idade, cutucava o irmão de sete anos, com uma vara de bambu apanhada no chão. Ele gritava impropérios que faria um adulto mais bem educado corar de vergonha. A mãe tirava fotos e gritava para apertarem o passo, pois a chuva não tardaria. Queriam eles que essa agüaceira toda lhe estragasse o celular?

Assim que as primeiras casas do bairro foram por eles avistadas, correram em grande algazarra para a campainha da primeira vítima.

Dona, meu irmãozinho furou o pé e nóis precisa de dinheiro pra pegá o ônibus e levá ele no pronto socorro, dizia a menina com cara de anjo.

A mãe tomava distância e se escondia. Não havia ensinado a farsa do dia, não precisava. Os irmãos maiores já entendiam o funcionamento dos cérebros da sociedade em que viviam. Os grandes ensinamentos teóricos e práticos que obtinham em casa e nas ruas lhes conferiam ares de doutores. O aprendizado acontecia de maneira eficaz, posto que sua dedicação exclusiva e integral não lhes dava tempo para questionamentos.

Quando finalmente chegaram à loja, o dinheiro para a prestação do celular dava para pagar, e ainda sobrava para algumas guloseimas.

A chuva recomeçara. Em pouco tempo, bueiros vomitavam água suja e fedorenta, papéis de balas, sorvetes, sacos plásticos, panfletos de propagandas etc boiavam pelas ruas comerciais, e os comerciantes praguejavam a ira de São Pedro. Por nenhum momento se ouviu o homem praguejar a si próprio, pelo lixo produzido e espalhado ao léu pelas ruas da cidade. A pequena criança, com o pé furado pelo arame farpado, buscava vez ou outra, na água fétida avolumada no chão, qualquer lixo que lhe distraísse o olhar. A mãe, no celular, ligou a cobrar para alguém para contar que até nas lojas a água já começara a invadir, que vira uma ratazana correr a se esconder num móvel qualquer, que as baratas haviam endoidado, e até uma cobra aterrorizava o grande número de pessoas que por ali se escondiam da chuva. Que ladrões se aproveitavam do apavoramento dos funcionários, roubando de um tudo, mas que para as crianças, aquilo tudo era diversão.

Chuva de verão é bom, refresca o calor, mas embolora até a alma, dizia ela.

Depois do estrago, a chuva sossegou. Hora de computar prejuízos, de limpeza grossa, de impropérios voltados à mãe natureza. Hora de culpar tudo e a todos. Pensar em prevenir, cada qual fazendo sua parte, não jogando lixo e providenciando soluções antes do acontecido, ao menos foi cogitado. Exigir do poder público um trabalho sério e eficaz nem pensar. E, como dor de parto esquecido, permanecerá tudo igual, pois para o próximo ano o cérebro estará a vagar, e de mais nada irá se lembrar.

Para o ano que vem a nova prestação do recém comprado celular, que além de tirar fotografias, ainda alivia dores de ouvido, deverá ser paga. Somente a pequena criança chorona não mais brincará nas enxurradas mal cheirosas, pois o tétano a terá levado até o infinito. Tão longe estará, assim como as primeiras grandes enxurradas formadas pelas chuvas do próximo verão.

Nicete Campos
4/2/2007


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