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É dando que se recebe ou quem dá o que tem fica sem vintém?
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Eis aí a confusão formada. Uma coisa, ou outra? Quando e qual provérbio aplicar, em situações idênticas sendo que são antagônicos?

Coração e cérebro. O primeiro é puro músculo, o segundo, uma mistura de redes neurais e massa. Uma coisa em comum os dois têm: sangue circulando! Veias pulsando...

Quando se deve dar para receber, e quando não dar para não perecer?

O impasse difícil de ser trocado em miúdos, exatamente por causa da singularidade de cada ser, carece de perguntas mais longas e/ou complexas, não significando com isso que a resposta possa ser simplista. Ao contrário, o antagonismo que tanto difere as frases em questão pode ser bem usado, caso essas sejam colocadas adequadamente nas situações com que habitualmente se depara o ser humano.

Poderia exemplificar “é dando que se recebe”, num jardim, onde o trabalho de hidratar, alimentar, podar e limpar o vegetal traria como retorno suas belas flores perfumadas, que encheriam nossos sentidos de prazer. Nesse mesmo jardim, o exemplo contrário a esse, ou seja, “quem dá o que tem fica sem vintém”, seria ter os mesmos cuidados anteriores, mas com uma diferença, antes de sua floração, arrancá-lo do seu habitat para satisfazer gosto alheio. Afinal, a satisfação dos prazeres reside na espera de ver o botão em flor e no seu desabrochar. Exemplo fraco na tentativa de poesia mal acabada. Afinal, como ensinar ações e reações advindas da fragilidade humana?

Talvez exemplo melhor e prático possa ser aqui colocado, por ser testemunhal. Remeto-me à minha infância. Um senhor de 114 anos de idade fazia sua romaria Brasil afora. Vinha de Minas Gerais perfazendo trechos de carros, caminhões, carroças, e quando não conseguia “caronas”, a bengala rústica feita de eucalipto, ajudava-lhe em sua locomoção. Nessas horas, sentia cansaço, sede e fome, indicando hora de se recolher. Entrava numa cidade, e a primeira casa que oferecesse meios de suprir suas necessidades básicas, deixava-se ficar. Quando as condições físicas lhe permitiam, seguia seu rumo até sua próxima exaustão. Por felicidade, esse anjo andador, veio bater na porta da minha casa. Foi acolhido, graças a benevolência da minha mãe. Os dias passaram rápidos demais, ou ele se recuperou em tempo recorde? A sabedoria de cérebro emaranhado era o responsável pelo seu coração de manteiga. Do alto dos meus nove anos de idade, tive a petulância de o questionar. Porque a beleza harmônica e gentil, estampada em seu rosto e gestos era tão gritante? O que conhecia ele da vida, e o que tinha tirado de bom dela para que exalasse e espalhasse tanta paz? Com um sorriso bonito de olhos miúdos punha-se a filosofar. A criança travessa e questionadora queria saber do seu corpo curvado, mas principalmente das mãos tortas de dedos disformes crispados na sua bengala. “A urutu, minha pequena, quando não mata, aleija”. Pensei que ele fosse Jesus disfarçado de velho pobre e arrisquei: como se pode saber do procedimento correto a ser tomado quando temos que decidir sobre coisas e pessoas? Seus dedos tocaram minha testa e o meu peito. O sorriso tornou a iluminar seu rosto: “quando cérebro e coração estiverem de comum acordo”. Mas nunca consigo isso, espantei-me aguardando uma luz. “Não aja! Aguarde, espere. Apenas tente fazê-los entrar num acordo o mais rápido possível. Quando isso acontecer, aja, siga em frente, com certeza a decisão tomada será a mais correta. Certifique-se sempre se realmente estão na mesma sintonia. A razão não deve ser maior que a emoção e vice-versa, devem ficar quites um com o outro”. E se eles demorarem ou não entrarem num acordo? “Aguarde o tempo que for necessário, desista até, se for o caso, pois uma decisão tomada de comum acordo entre cérebro e coração a levará ao contentamento, à leveza de ter sido justa, à consciência tranqüila, a se sentir parte equilibrada do universo”.

Hoje, me deparando com tanta ignomínia, esperteza maldosa e raridade em altruísmo do ser, e depois de tanto exercitar mente e coração, ainda não me considero apta a convergir para um ponto de equilíbrio.

Será que aquele senhor bondoso, de sábias palavras, poderia imaginar que um dia as inversões de valores assumiria ares descarados, fazendo com que os corações deixassem de pulsar tamanha rigidez, e que os cérebros se desmanchariam em apodrecimentos fétidos e purulentos?

Ser ou não ser! Receber por ter dado! Dar e perecer!

Em cada canto do universo, em cada palavra marcada por gestos, só o todo poderá decidir o que melhor quererá para si. Inferno e céu, na mais pura concepção das palavras, são opções dadas a escolher. O caminho do meio? Bem poucos serão sábios para o seguir.

Nicete Campos
6/3/2005


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